segunda-feira, 7 de maio de 2018

As Aventuras de Anamar | 4


Anamar tinha medo de morrer. Talvez não fosse bem medo mas antes uma melancolia que lhe enchia o peito e os pensamentos. Quando era criança, tinha um pânico absurdo da morte. Na sua imaginação sempre fértil, a morte assumia contornos humanos, vestia de preto e escondia-se nas esquinas das ruas e do tempo. Anamar não gostava de esquinas por isso mesmo, porque nunca se sabia se ela estaria do outro lado, com um ancinho na mão pronta a ceifar-lhe a vida de que tanto gostava. Estes pensamentos mórbidos da primeira infância evoluíram para algo mais filosófico e existencial. Nas noites de insónia que pautaram a sua adolescência e a entrada na idade adulta, Anamar deixava-se consumir pela angústia que o depois da morte lhe provocava. Para ela, o depois da morte era um tempo não contado. A ideia desse tempo sem tempo fazia-lhe impressão. Porque não conseguia adivinhar quantos anos iria estar morta. Talvez cem. Ou duzentos. Ou para sempre. Sim, talvez fosse mesmo para sempre e isso causava-lhe arrepios no corpo. Pensava nesse para sempre e constatava que era muito tempo, um lugar muito amplo e muito vazio, onde se perderia e desintegraria e nunca mais ninguém se lembraria de quem tinha sido, nem das roupas que tinha usado, nem dos amores que tinha amado. Agora, já adulta, Anamar substituíra o medo de morrer pela pena que isso lhe causava. Apesar de o mundo ser um lugar comum que não evoluía tanto quanto lhe faziam crer, Anamar gostava de andar por cá. Gostava de ter um corpo que lhe permitia andar e conhecer mundo. Gostava das cores e dos cheiros, da sensação do sol na pele e das melodias que lhe preenchiam os dias. Sim, Anamar gostava de estar viva, de amar, de sentir e até de sofrer de mal de amor [esse que nunca a largava]. Gostava de poder levantar-se cedo e passear descalça pela casa. Gostava de escrever para si mesma. Gostava de sentar-se em frente da estante dos livros e ficar a contemplá-los como uma mãe contempla os seus filhos. Quando morresse, teria de deixar tudo isso. Teria de deixar a caixinha de música, a malinha amarela, os quadros nas paredes, o chapéu de abas com flores, os paninhos de crochet, os óculos de sol, as saias de roda, os sapatos de meio salto, os amores-perfeitos, o vício das pipocas [quem iria garantir o sustento do senhor que vendia pipocas?], a necessidade de amar, os poemas, os contos, os livros [sobretudo os livros]. Era deixar tudo isso, um dia, que lhe causava tristeza. Não medo, não ansiedade, apenas uma profunda tristeza acompanhada da certeza de que, depois do último ponto final, permaneceria o vazio. E Anamar não gostava de vazios, nem de incertezas nem de para sempre.


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