terça-feira, 2 de maio de 2017

Conto por Conto | As Aventuras de Anamar | 1


Anamar olhava a porta branca da sua casa, da mesma forma que olhava as muitas portas brancas da sua vida. Trinta anos. Um lar minimalista. Muitos sonhos na cabeça. Anamar gostava de saias de roda e de blusas com pássaros bordados. Gostava de pintar os lábios de vermelho e fazer de conta que era Amélie Poulain. Anamar tinha desejos infinitos guardados num baú trancado. Tinha deitado fora a chave num momento insano, o mesmo em que jurara nunca mais abrir as portas (as tais muitas portas) ao amor.

Nos dias que passavam apressados, Anamar dividia-se e conjugava-se no verbo ser. Ser melhor pessoa num mundo estranho. Ser melhor amiga dos amigos que não o eram. Ser melhor filha de uma família fechada. Ser melhor profissional numa profissão que não tinha. Anamar gostava de pintar telas ao fim-de-semana, enquanto bebia chás de tília e de flor de laranjeira. Diziam os entendidos que fazia bem. Anamar acreditava. Pela casa pequena e branca, jaziam vários cadernos de capa dura e colorida. Cadernos repletos de poemas e de linhas vazias, testemunhos de noites de insónia ou de dias de chuva e frio. Anamar não gostava do frio. Sentia gelar os ossos e as palavras saíam trocadas e aos tropeções. Anamar não gostava de usar saltos altos, tinha medo de cair. Da mesma forma que não ousava voar muito além do parapeito da janela. Afinal, o chão era feito de cantaria e podia magoar.


Anamar tinha medo de amar. Depois de meia vida feita de desamores, Anamar resguardara-se por detrás das muralhas que construíra em redor do seu coração, um coração marcado, com cicatrizes feias, algumas ainda de fresco. De quando em vez, Anamar atrevia-se a sair dessas muralhas e a ver além. Cobria-se de purpurinas e renovava os trajectos. Sentava-se nos bancos de jardim, com os seus óculos de sol e a malinha amarela ao lado, e ficava a ver quem passava. Quando lhe apetecia, comprava pipocas e ficava a ver a vida como um filme, com personagens que mudavam a cada instante.

Anamar era de poucas palavras. Gostava mais de letras e de livros antigos. Certo dia, pegou na mala cor-de-rosa de viagem e decidiu partir para Sul, rumo às praias de água quente que nunca conheceu. Não esqueceu o seu chapéu de abas com flores de lado, muito menos o fato de banho com flamingos desenhados. Deixou para trás a casa branca, com portas brancas e poucos quadros nas paredes. Deixou para trás as aflições, as perfeições e os medos ansiosos. Deixou para trás o mundo estranho que não lhe correspondia, os amigos que não o eram, a família sempre fechada e o trabalho que não tinha. Deixou para trás os bancos de jardim e as pipocas. Deixou para trás o medo de (se) amar. Rumou ao Sul, onde era sempre Verão e as estrelas brilhavam mais. Apanhou o autocarro e desfrutou da viagem. Quando chegou, tirou os sapatos e pôs os pés no chão. Sentiu o perfume do mar. Sorriu. Foi viver.



(conto publicado no site Quem Conta Um Conto)

1 comentário:

  1. Querida Catarina, já tive no teu blogue, já cá estou neste e vou já seguir e ler, com todo o prazer, as tuas palavras!

    ResponderEliminar