Lembro-me como se fosse hoje. Era um dia de sol de Outono.
Tudo o que eu queria era olhar pela janela ao invés de prestar atenção nas
palavras melódicas do senhor professor. Mentira. Nunca gostei de olhar pela
janela. A janela apenas mostrava um pátio vazio e cinzento, nada mais. Preferia
olhar os livros e, a partir deles, voar para longe dali. Foi então que, numa página perdida do grande manual de
português, encontrei o Guardador de Rebanhos. E comecei a ler para mim. E
apaixonei-me nesse exacto segundo. E começou aí, numa sala bafienta de um
colégio frio e triste, esta minha paixão desmedida.
“Eu sou um guardador de rebanhos”, dizia ele. E eu
suspirava. “Sei a verdade e sou feliz”. E eu suspirava outra vez, vezes sem
conta perante o olhar quase atormentado do senhor professor. E voltava ao
início. E lia outra vez, como se fosse a primeira. Tinha dezassete anos, pouco
mais se poderia esperar de uma miúda de dezassete anos cheia de sonhos na alma.
Sentia que Alberto Caeiro me compreendia. Como se, tantos
anos antes, tivesse adivinhado a minha pessoa e os meus pensamentos e decidisse
escrevê-los para que, quando eu os lesse, me recordasse de mim mesma ainda
antes de existir. Confuso, eu sei. Mas era este o meu pensamento de cada vez
que lia e relia os seus poemas. Foi Caeiro que me valeu muitos 'dezanove valores' nos testes de
avaliação. Era nele que me inspirava para escrever tudo direitinho. E quase
morria de alegria quando o poema para analisar era dele ou quando o texto
expositivo-argumentativo era sobre ele.
Alberto Caeiro não é só um heterónimo. Não é apenas um
heterónimo. É mais, muito mais, tão mais do que isso. Alberto Caeiro existiu,
se mais não foi, na minha imaginação e na devoção que ainda hoje lhe tenho. É,
para mim, como um deus. O deus das palavras simples. Caeiro ensinou-me
a ser simples, a olhar de forma simples, a sentir de forma simples. Pena eu me
ter esquecido de alguns desses ensinamentos. Caeiro ensinou-me a gostar
mais do rio que corre pela minha aldeia.
Chamam-lhe o poeta da Natureza. O mais simples. O mais
verdadeiro. Aquele que apenas olhava e era feliz por isso. Aquele que se
contentava com o sabor do vento, sem querer saber mais do que isso. Aquele que
contemplava a beleza de uma borboleta sem querer saber de onde ela veio ou para
onde vai. Caeiro era assim, fiel aos sentidos e feliz por isso.
Talvez seja esta melancolia feliz, ou esta felicidade
melancólica, que nos une. Talvez veja nos seus versos identidade. Sentimento.
Emoção. Ingenuidade. Talvez os seus poemas me devolvam um pouco da criança que
fui um dia e deixei morrer algures no caminho que percorri até aqui. Talvez.
Quando estou triste, só os poemas dele me alegram. E me
confortam. E me fazem chorar. Porque chorar também é bom, limpa a alma, alivia
a dor que às vezes é tanta. E, por momentos, volto a ser aquela menininha de dezassete anos, cheia de sonhos na alma, que só queria passar o resto da vida a ler livros e a escrever, naquela sala bafienta de um colégio sem sol. E
volto a apaixonar-me, uma e outra vez, as vezes que forem precisas.
Não me peçam para fazer análises semânticas dos seus poemas.
Não me peçam para estabelecer comparações e linhas paralelas com o seu
progenitor Fernando Pessoa [que também muito estimo]. Não me peçam para
descobrir correntes linguísticas em cada verso, ou nos versos todos. Por certo,
não o saberei fazer com a mestria dos que dominam o mundo das letras. Mas, se
me pedirem para falar daquilo que sinto quando leio os seus poemas, passarei
horas e horas a falar e a demonstrar, por vezes de forma incompreensível, todo
esse sentimento, todo esse amor. Amor, sim, amor. Porque é possível amar muitas
coisas. Porque devemos sempre amar aquilo que nos faz bem, que nos sustenta,
que nos permite parar e desfrutar da simplicidade de cada coisa.
Esta paixão sem tamanho por Caeiro já faz
parte de mim. Devo-lhe este amor pelas letras, pela poesia, pela arte. Devo-lhe
a sensibilidade que fui desenvolvendo ao longo dos anos e que me faz olhar o
mundo de forma diferente. Devo-lhe o dom de conseguir escrever aquilo que
sinto, aquilo que me define, aquilo que me sustenta. Devo-lhe tanto que todas
as palavras e todos os poemas do mundo são poucos para demonstrar a minha
gratidão. Mais olhares como o de Alberto Caeiro houvesse e este mundo seria um
lugar melhor.
[Texto também publicado na plataforma Obvious]
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